domingo, 22 de julho de 2007

O Calvário dos Notáveis

Nem todos nós estamos dispostos a abdicar do anonimato. O preço de ser famoso é abrir mão de nós mesmos. Toda e qualquer ação gera uma repercussão e são nelas que nos vemos obrigados a pensar antes de agir. Pensar mais nos que nos rodeiam do que em nós mesmos.
A regra parece ser simples – as responsabilidades do anônimo são privadas e as do “notável” são públicas. Cidadãos anônimos são como empresas limitadas: seus assuntos e decisões se circunscrevem aos sócios, geralmente poucos. Cidadãos públicos são como as S.A., com suas diretorias, conselhos, acionistas, agências reguladoras etc. Simplesmente não podem decidir nada sem antes reunir, no mínimo, uma dúzia de cabeças pensantes. A S.A. carrega o peso de suas ações perante a opinião pública enquanto os anônimos tomadores de decisão dormem o sono dos justos. Perfeito, não?
Como dizia minha avó, cada cabeça, uma sentença!
Pois é mesmo assim. Tem pessoas que não sentem a menor falta de si mesmas. Estar em evidência é o que importa. Talvez o fato de estarem rodeadas por tantas outras, prontas a responder a seus chamados, satisfazer seus desejos, reverenciar sua presença etc., lhes proporcione uma sensação agradável de poder.
Acham, provavelmente, que as ordens que emitem, as decisões que tomam ou, em casos infelizes, as humilhações que proporcionam às outras pessoas são provas irrefutáveis de seu poder e, por conseguinte, de sua liberdade.
Será que se lembram de que, para manter tais prerrogativas, devem, obrigatoriamente cumprir protocolos, acatar ordens e submeter-se às escolhas de outrem? Ou que, com freqüência, abrem mão de sua dignidade, agindo contrariamente aos seus princípios?
Pode ser que por amarem tanto os meios e fins, nem se dêem conta, mais, dos princípios e tampouco de sua posição na hierarquia das decisões. Há tanto a perder, não é mesmo? E, caso comecem a se sentir incomodados, a razão humana é competente o suficiente para disponibilizar explicações para lá de convincentes e boas causas para a acomodação.
Parece correto, então, afirmar que estas pessoas, verdadeiramente, não têm problemas em fruir os ônus e bônus de uma vida pública. Fizeram a sua escolha e estão satisfeitas com isso.
Ocorrem, no entanto, casos em que a escolha não é facultada à pessoa: sua vida é tornada pública por força das circunstâncias. No início, acreditam mesmo estar vivendo um período bom, em face de tantas experiências novas e ao aprendizado que isso lhes enseja.
E vão tocando o barco, enquanto o vento soprar a favor ou o fiel da balança não ultrapassar o ponto de equilíbrio. Pois as pequenas coisas – que tanto prezam e das quais são tolhidas – vão pesando e fazendo a diferença.
Aos poucos, já não percebem o sentido da vida que as leva, mas, ao mesmo tempo, sustentam nos ombros a responsabilidade de todo o seu entorno. Ficam nostálgicas e precisam imensamente de seus amigos verdadeiros. Mas eles se afastaram, sufocados pela turba de admiradores e cortesãos de carteirinha.
As manifestações de carinho, mesmo em profusão, raramente têm por recheio o amor genuíno, que aceita, compreende, ampara e nada cobra.
Tornam-se macambúzias, o olhar perdido, os ombros caídos. E costumam recorrer às mais diversas fugas que a cultura humana produziu historicamente, e não se trata apenas de sexo, drogas e rock and roll.
A corte, talvez em um reflexo extremado de autopreservação, aumenta sua vigilância e cobrança. Interpreta os sintomas como causas e vai fazendo o quadro se agravar ainda mais.
Nada do que está escrito aqui é novidade; um sem-fim de autores já escreveu a respeito. Porém, situações como estas se repetem todos os dias e com desfechos muitas vezes dramáticos.
Não temos o direito de crucificar nossos “notáveis”. A mídia, infelizmente, é a primeira a nos apresentar a cruz e lá vamos nós, no calvário, a cuspir e jogar pedras.
A responsabilidade pública de um “notável” não pode eliminar sua individualidade – não temos o direito de martirizar ninguém em prol de causa alguma.
É preciso respeitar a pessoa humana que está por trás do “ídolo”. Se, para algumas, a vida pública é fácil, para outras é um esforço hercúleo. Dentre estas, há aquelas que conseguem manter um mínimo de privacidade, talvez porque estejam rodeadas de pessoas que as compreendam e que cooperem para assegurar-lhes esse mínimo necessário. Outras, entretanto, não são bem-sucedidas e, constantemente, se vêm em meio “às feras”, lançadas por quem, em verdade, deveria protegê-las.
Por favor, olhe à sua volta e observe se você, em algum momento ou de alguma forma, está fazendo isso com algum “notável”. Se sim, cobre de si mesmo uma transformação e não dele.
Ajude-o. Diminua a carga sobre os seus ombros. Dê a ele o direito de ser, pelo menos de vez em quando, aquele “cidadão comum como esses que se vê na rua”[1].
Quando fito olhos famosos e profundamente tristes, meu coração palpita. Principalmente por estar longe e não poder fazer nada. E lembro dos tantos que “se perderam no caminho”[2]...Mais que um desabafo, o que faço aqui, hoje, é um apelo.
[1] Trecho de música de Belchior.
[2] Trecho de música “Sol de Primavera”, de Beto Guedes.
(Escrito em fev/2003)

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